O senhor do chapéu de feltro está sentado num banco diante do plácido Guaíba, no calçadão de Ipanema. Não é fim de tarde ainda e o Sol ainda se mantém alto, não revelando ainda todo o esplendor do belíssimo cenário que compõe todas as tardes para os Porto Alegrenses.
A passos calmos. Um homem se aproxima. Veste-se esportivamente: calça jeans, jaqueta, tênis, cinto, camisa La Coast com a gola aberta, óculos escuros. Está com barba rala, por fazer e olha para a margem oposta do rio e senta-se no mesmo banco.
-O senhor está atrasado.
-Tive uns contratempos.
-Então não vamos perder mais tempo: já tens o que eu pedi?
-Sim, não foi difícil conseguir. Só não entendo para que o interesse pelo projeto hidro-sanitário de um prédio velho. Ninguém nunca me pediu isso antes.
-A primeira vez sempre assusta, meu jovem. Disse o homem do chapéu sorrindo enquanto apanha o disco alcançado pelo jovem de roupa esporte.
-Espero que eu tenha ajudado de alguma forma, falou o jovem tentando arrancar mais alguma informação do velho, que sem agradecer já estava em pé e se afastando do local, dando as costas para o rapaz.
-Que cara esquisito...eu hein! Pensa ele enquanto toma o caminho oposto, olhando de vez em quando para trás, para ver se o velho também olha, porém o velho se afasta cada vez mais desaparecendo noutra rua.
Vinte dias depois, na sede da policia federal localizada numa larga e movimentada transversal da cidade.
-Como foi que isso aconteceu?
Berrou o delegado federal Amaury para os subordinados enquanto corria o olhar deles para um amontoado de processos numa prateleira dentro de um cofre, situado no subsolo do prédio. No meio da pilha de documentos, um em particular atraia a atenção do delegado: estava todo manchado com uma tinta escura e muitas páginas pareciam estar enlameadas com alguma espécie cola pegajosa. O documento era o único da pilha que estava nestas condições. O delegado visivelmente nervoso disparava perguntas e ordens à todos a sua volta.
Requisitou nomes de todos que tinham acesso ao recinto, cópias de vídeos da câmeras de segurança, escalas de quem estava de trabalho na noite anterior e enquanto falava alucinado ao celular, insistindo em sabotagem, implorando que peritos comparecessem ao local para levantar a ocorrência, e tudo isso no meio de um tumulto que varou o prédio da manhã até a tarde. E neste mesmo dia, um promotor estarrecido recebia a notícia, no Ministério Público, que o inquérito 611724208 não poderia mais ser remetido dentro do prazo e que todos os depoimentos e fatos nele arrolados foram seriamente danificados, possivelmente numa ação deliberada de vandalismo criminoso dentro das dependências da sede da policia, mas que o mesmo iria ser reconstruído, mas o delegado insistia de que o adiamento dos prazos seria inevitável, etc..etc..etc...
Durante as investigações posteriores, os peritos não chegaram a nenhuma conclusão que pudesse elucidar o crime. Não entendiam como “o” ou “os”, meliantes, poderiam ter tido acesso à uma área tão restrita e em pouco tempo terem danificado seriamente o documento. A desconfiança repousou sobre todos os presentes e um começou a duvidar do outro, o que irritou a cúpula da policia e o secretário de justiça, já que o inquérito era o desfecho de uma operação de dois anos em que se desbaratava uma quadrilha especializada em lavagem de dinheiro proveniente pirataria de peças de reposição para máquinas importadas e evasão de divisas. No inquérito estavam relacionados nomes de políticos, empresários e doleiros, além de artífices altamente especializados na manufatura pirata de peças patenteadas.
A sala do cofre foi interditada e lacrada pela corregedoria e todos os policiais suspeitos foram afastados, incluindo o próprio delegado Amaury. O inquérito não pode ser reconstruído integralmente e as testemunhas não quiseram reafirmar o que tinham deposto. Diante da fragilidade do documento reencaminhado ao Ministério Público, o promotor não pode oferecer denúncia e teve de propor acordo com os advogados dos acusados. O caso teve ampla repercussão na imprensa local e até hoje repousa sobre uma mesa da promotoria de crimes fazendários. O promotor negou-se a falar no caso e passou a evitar a imprensa.
Os acusados comemoraram o desfecho dentro de uma churrascaria, com abraços, sorrisos e semblantes de alívio em todos.
Dez dias depois, no Instituto Geral de Pericias, durante uma noite de garoa fina e fria sobre Porto Alegre.
O perito Adelar examina as fotos coladas nas ultima páginas da pasta referente ao caso da sede da policia.
Já vira estas imagens várias vezes, mas um detalhe numa das fotos, que não tinha notado, lhe chamou a atenção: no canto superior esquerdo, um ponto preto. Com uma lupa verifica que se trata de uma pequena abertura circular, usada para ventilar o interior do cofre. Nota que esta abertura, de mais ou menos duas polegadas de diâmetro estava aberta. A tela de proteção estava rasgada. Olhou e re-olhou o detalhe. Procurou um DVD em meio aos que estavam arquivados em uma caixa e começou a analisar as imagens captadas por uma câmera instalada dentro do cofre. Observou que uma sombra muito estreita, como a de uma corda, movia-se fora do campo da tela. Ficou intrigado, mas deu de ombros. Afinal, como isso poderia mudar o rumo das coisas? Fechou a pasta e a jogou na pilha de outras que teriam destino semelhante: o arquivo morto.
Enquanto isso, em outro ponto da mesma cidade:
-Meus parabéns. Realmente não temos como demonstrar tanta gratidão. Insistimos que o senhor nos diga qual é o seu preço.
Falou o advogado de um dos investigados ao senhor do chapéu de feltro.
Sentado e imóvel, ele apenas sorriu.
-O senhor soube como me encontrar e tem algo que permitiu a nossa aproximação. Deve saber que isso implica vantagens e obrigações para com a minha organização e que sempre que necessitarmos, entraremos em contato. O seu apoio é o pagamento pelos nossos serviços.
-Realmente, meu amigo...posso lhe chamar assim...ehrrr...que lapso...esqueci de perguntar o seu nome...como é que o senhor se chama mesmo? Disse o advogado esticando o olhar para o senhor de chapéu, que apenas lhe responde com um sorriso e faz um gesto na sua direção. O advogado retira um cartão do bolso e o alcança em direção do senhor de chapéu. Em uma face do cartão se vê um holograma, que varia a imagem de uma serpente com um número de celular. O homem de chapéu confere o objeto e o devolve.
-Fique com ele. Se alguém mais precisar, nas mesmas condições em que o senhor e os seus necessitaram, repasse-o, sempre com a condição de máxima discrição e segredo.
-Muito bem, entendo suas precauções. Não se preocupe. Morre aqui o que tratamos. Se não deseja pagamento, que o seja. Estaremos sempre à sua disposição quando necessitar. Há...se me permite mais uma pergunta: como foi que o seu grupo conseguiu destruir o processo? O senhor sabe que todos nós ficamos surpresos com a forma que o usou para nos ajudar. A sua organização deve ser muito poderosa mesmo, se me permite afirmar, pois até eles não sabem quem foi o autor da proeza.
Disse e olhou curioso para o homem do chapéu.
Ele apenas devolveu um olhar sem expressão:
-Não foi alguém ou qualquer outra pessoa. Isso eu lhe garanto. Não usamos da intervenção de ninguém nesta ação. É uma medida de segurança. Isto é que garantiu nosso sucesso.
Falou enquanto se levantava e ajeitava o chapéu de feltro, despedindo-se. Virou as costas para o advogado e seguiu caminho, sem mais olhar para o advogado, que sem entender o que o homem dissera, apenas acenava timidamente um adeus.
Fim deste episódio.
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