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sexta-feira, 31 de agosto de 2012

7 - O EXILADO

         
          
O noticiário acordou a cidade com manchetes disparadas por dezenas de repórteres acampados diante da embaixada do Uruguai em Porto Alegre. Um homem está lá dentro pedindo asilo, alegando perseguição política. As noticias desencontradas concordam num único ponto: o perseguido pretende escapar de uma extradição, pois está no rol dos foragidos da INTERPOL. Ele é procurado pelos governos onde teria cometido crimes de terrorismo e assassinato. O consulado uruguaio não se manifestou quanto ao pedido de abrigo, para não gerar uma crise diplomática com os governos ofendidos, que imediatamente reclamaram a deportação do criminoso.
           A relutância da diplomacia platina em não atender o clamor internacional gerou protestos mundo afora. O representante uruguaio foi convocado pelo governo brasileiro a dar explicações, e o apoio dado ao asilado pelas organizações de direitos humanos, engrossou o caldo de ofensas e ameaças de retaliação entre os litigantes, instaurando uma crise política na região do Cone Sul. O governo norte-americano solicitou ao seu escritório para assuntos latino-americanos um acompanhamento do caso. O governo brasileiro emitiu apenas evasivas conclamando as partes ao diálogo, para não se envolver na questão. A imprensa internacional, ávida por mais espetáculo, publicou uma lista de atos supostamente cometidos pelo fugitivo. Em capítulos, como se fosse uma novela, foram ilustrando com gráficos e fotos, de assaltos à bancos até explosões em trens de passageiros, com estatísticas de mortos, feridos e prejuízos espalhados.
         -Todos os delitos foram praticados pelo grupo chefiado pelo senhor Arthur, que é o verdadeiro nome dele.
         A fala grave do porta-voz do governo inglês aos jornalistas era enfática: dentro da embaixada latina estava um assassino frio e sanguinário. Ele devia ser preso, deportado e julgado pelos diversos crimes que cometera.         
        As declarações do diplomata provocaram a ira dos grupos simpatizantes do asilado, amontoados defronte à embaixada castelhana. Com palavras de ordem gritavam que todas as acusações eram suposições de uma farsa. A trama era destinada a sacrificar um inocente. Berravam com amplificadores de som que não sairiam dali até que os uruguaios e brasileiros garantissem salvo conduto ao sujeito, que queria ir viver em Montevidéo.
        Os ânimos foram se elevando.
        O choque entre quem apoiava um lado e outro não tardou acontecer. As agressões verbais deram lugar a uma briga generalizada entre a polícia e as turbas que digladiaram numa luta campal. Bombas de efeito moral e cacetadas foram democraticamente distribuídas. Lojas fecharam as cortinas e moradores correram de um lado para o outro tentando escapar da violência, enquanto carros eram incendiados e pedras  voavam como foguetes.
       Enquanto isso, negociações tensas no meio diplomático tentavam amainar os efeitos que a presença indesejada do terrorista estava causando em solo nacional.
       -Não é possível que os uruguaios mantenham ele lá indefinidamente. Cabe a nós dar um “salvo conduto” para ele sair do país, mas se fizermos isso estaremos provocando uma crise maior ainda. Falou um alto funcionário brasileiro ao premiê inglês.
       -Vocês não podem fazer isso sem o aval internacional. Contrapôs o bretão, num português crivado de sotaque.
       -Vamos evocar a Soberania de Estado. Isto é direito internacional reconhecido. Porém, só o faremos se não houver uma saída negociada para o impasse. Insistia o representante tupiniquim.
      -Estudem a questão com delicadeza. Tenha certeza de que os apoiaremos, desde que os nossos interesses não sejam ignorados. O inglês levantou-se da poltrona macia e após uma despedida rápida dos demais presentes naquela reunião, deixou a ampla sala do Ministério das relações exteriores. Os presentes se entreolharam com certo desânimo.
       -E agora, o que faremos? O cônsul uruguaio foi convocado, mas até agora não nos deu resposta. O clima está muito ruim.
       Argumentou um homem calvo que trajava elegante terno cinza, riscado de azul, combinando com a gravata de grife.
      -O presidente já foi comunicado. Isto já foi além da diplomacia. Agora é entre Chefes de Estado.
       Respondeu o que tinha acabado de falar com o bretão.
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       Enquanto isso, na zona sul de Porto Alegre, numa mansão encravada no alto do morro São Caetano, um senhor sexagenário olha para a bela vista que tem do rio Guaíba pela vidraça do mirante construído justamente para isso. Ele tenta aliviar a angustia que o oprime desde que se instaurou a crise política. O exilado foi um companheiro de lutas passadas, que agora se tornou inconveniente. Com a visão da paisagem e uma tragada no cachimbo de marfim, tenta relaxar, mas não consegue. Volta-se quando o telefone toca. Um secretário particular atende ao chamado e lhe repassa o telefone:
       -Senhor Orquiz, do consulado.
       -Obrigado Hortz. Pode sair e me deixar só?
         O sexagenário e dono da mansão, sabe que um pedido seu é uma ordem, que  prontamente é atendida pelo subordinado fiel.
        -Boa tarde, “sir”! Falou o milionário, e uma voz familiar no outro lado da linha retrucou:
        -Ele voltou.
      -Sim, ele mesmo. Respondeu o sexagenário à voz rouca que denuncia problema nas cordas vocais do interlocutor.
        -Tempos ruins esses. Isto lhe parece o quê? Pergunta Orquiz, num tom de voz que só quem viveu muito tempo em terras setentrionais pode ter.
       -Parece um pesadelo. Ele não podia ter surgido em pior hora. Pensei que ele estivesse morto.
       -Mas não está e agora nos põe em uma situação delicada. Pode nos deixar sem cobertura. Contrapôs Orquiz ao velho conhecido do outro lado da linha, que não esperou que completasse a frase:
         -Temos que por fim nisso agora. Ele não pode sair do país, isto seria um desastre.
         A  suplica vinda de longe pelo telefone recebeu o rebote de um tom rude e enérgico na resposta de Orquiz, que ecoou por todo o mirante da mansão:
         -Não se preocupe, velho amigo. Ele não vai sair vivo daquela embaixada.
          -Orquiz...Orquiz! Tome cuidado com o que vai fazer. Não nos exponha ou ele dará com a língua nos dentes e aí sim, estaremos perdidos.
          -Não se preocupe. Confie em mim. Nunca deixo uma pendência para trás. Tenho plena confiança num pessoal altamente especializado, que vai resolver este impasse para nós e fazer um “serviço” limpo.
           O velho amigo de outros tempos, do outro lado da linha, desabou numa caríssima cadeirinha de aproximação - um entre tantos itens exclusivos de quem tem muito dinheiro para gastar - parecendo que o coração vai lhe saltar pela boca;
           -Por favor Orquiz, por favor, é tudo que lhe peço, não nos exponha. Os últimos que contrataste em Santiago só fizeram  merda. Foi muito difícil limpar toda a sujeira. E...
            Não completou a fala e foi cortado pela voz de Orquiz:
            -Desta vez nós acertaremos. Não se preocupe, amigo. Tudo vai dar certo. Confie.
            Orquiz desligou e o amigo, hoje um abastado milionário, ficou olhando para o aparelho na mão.       
       Ele levantou-se e se arrastou pelo amplo ambiente. Olhou demoradamente para uma moldura envidraçada, na qual pendiam medalhas e honrarias recebidas em outras épocas, pendurada acima da lareira. Foi quando combatia supostos comunistas em vários lugares do planeta. As insígnias perderam o significado nos atuais tempos. Eram lembranças que deviam há muito estarem enterradas, mas sempre alguma coisa escapava do controle  e emergia como um pesadelo do passado. Um passado de muita morte, muitas mentiras e muito dinheiro “sujo”. Voltando ao presente, ele faz um chamado pelo secretário. Começou a se sentir suado e o velho coração lembrou-se dos defeitos da idade. O velho saiu à procura do remédio para a taquicardia, com as mãos tremulas e ofegante, que sempre usa debaixo da língua nas crises agudas. O secretário surge na porta e na hora soube: o patrão teria de ser levado para o hospital.
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               Alguns dias depois....
          Em outro ponto da mesma cidade, próximo da quadra onde se localiza o prédio da embaixada uruguaia, um caminhão Scânia de cinco eixos se movimenta lentamente, procurando um lugar para manobrar e estacionar. Dentro do baú, técnicos manipulam alavancas e computadores. Recebem ordens vindas de longe, da Central de Controle. Eles dão vida ao arauto, a "coisa". A rua defronte ao consulado está bloqueada e vigiada dia e noite pela policia. Os manifestantes foram afastados e mesmo assim, permanecem fazendo algum barulho por ali.
            Dentro do prédio, o pivô da crise, já barbeado e de banho tomado, saboreia uma refeição oferecida pelos anfitriões. Ele sorri, despreocupado com os últimos acontecimentos. Enquanto conversa e degusta nacos de assado de javali ao vinho do porto, vai tracejando planos para o futuro: comprar uma fazenda e criar gado de corte nobre. Questionado como fará isso, ele argumenta que tem “algum” dinheiro guardado. Um companheiro de prato lembra que ainda não chegou resposta do governo brasileiro para o translado seguro até o aeroporto. O ex-terrorista para de comer por alguns instantes, fica apreensivo, mas ignora o comentário.
            Após aprovar o manjar que lhe fora oferecido, o fugitivo da INTERPOL diz que vai para a suíte destinada aos hóspedes, acompanhar  as noticias pela televisão. Levanta-se da mesa e se despede, sob o olhar parado dos que nela ainda estavam.
            Arthur entra no quarto e se tranca. Debaixo da cama retira uma maleta tipo 007. Abre e confere o conteúdo: barras de ouro, celular via satélite, documentos falsos e uma pistola .45, carregada para alguma eventualidade. Era tudo o que ele julgava precisar para recomeçar a nova vida, se tudo desse certo, tal como planejara. Ele tinha algumas autoridades uruguaias “na mão” e não seria difícil obter o visto permanente. O problema estava em solo brasileiro, mas ele ia deixar a diplomacia uruguaia resolver. Que eles se virassem. Algumas autoridades platinas lhe deviam isso. Liga a televisão sem prestar a atenção na programação. Aumenta o volume. Pega o celular e tecla alguns números. Fica aguardando até que alguém atende.
            -Alô! Diz uma voz feminina que recebeu a ligação.
            -Sou eu. Estou falando da embaixada. Prepare tudo. Logo, logo vou sair daqui.
            -Já conseguiu salvo conduto?
            -Ainda não, mas está quase lá. Eles não vão me deixar na mão, depois de tudo que fiz. Eles sabem que não podem....
            Um ruído de algo sendo arrastado interrompe a concentração do terrorista, que se desliga do telefonema e procura com o olhar a origem do barulho. Instintivamente saca a pistola e a engatilha. Ele tomba o telefone na cama enquanto a mulher no outro lado da linha continua a falar, sem saber que não está sendo mais ouvida. Ele se levanta e caminha com desconfiança até o banheiro. Cuidadosamente empurra a porta para aumentar o ângulo de visão. O banheiro da suíte é amplo para acomodações destinadas à hospedes. Ele não consegue ver muita coisa na penumbra e procura o interruptor na parede, ao lado da porta, com a mão direita, enquanto empunha a arma na outra mão. Procura aguçar os sentidos. Quando enfim os dedos tocam o interruptor e acende a luz, o fugitivo leva um susto e se joga para trás, desequilibrando o corpo enquanto aperta o gatilho. Uma “coisa” que só tinha visto em telas de cinema de terror avança em sua direção. Ele aperta o gatilho e vários tiros da arma de repetição se espalham pelas paredes e teto. Ele tenta inutilmente mirar no “alvo”, que se movimenta com agilidade impressionante. A “coisa” é mais rápida e se lança num bote mortal contra o homem, que com olhos esbugalhados berra por socorro. Os outros habitantes da embaixada correm com armas em punho. Há um alvoroço dentro e fora do prédio da embaixada. O cônsul é o primeiro a ser levado para o sub-solo, num movimento ensaiado à exaustão pelos seguranças. Na rua, os policiais atônitos sacam das pistolas e disparam ordens para controlar a turba, que ameaça romper os cordões de isolamento. No corredor que dá acesso aos quartos do primeiro andar do prédio da embaixada,  os agentes esbarram na porta do quarto de hóspedes trancada por dentro. Como não sabem o que está acontecendo, gritam pelo infeliz que está trancado no aposento. O que escutam é somente o alto som da televisão. Um oficial dá ordem para arrombar a porta e a mesma é posta no chão aos chutes. Os seguranças avançam apontando as pistolas em todas as direções e a única visão que eles tem é a do terrorista jogado no chão, ainda com a arma descarregada na mão. Ele está com os olhos arregalados e  numa expressão de pavor. Um segurança aproxima o ouvido do rosto da vitima, estirada no meio do quarto. Um som quase inaudível sai da boca do criminoso mais procurado do planeta: “é um monstro”.
         Balbuciou  e se silenciou para sempre, para espanto de todos aqueles agentes armados e boquiabertos.
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          Quinze dias depois e após a imprensa ter divulgado uma nota da embaixada uruguaia lamentando a morte do ilustre hospede, alegaram foi "suicídio por overdose de paralisante muscular", que não conseguiram identificar. Não explicaram as circunstancias em que se deu a “intoxicação”. O corpo foi levado para um crematório e as cinzas enviadas para o país de origem do terrorista. Todos os que foram prejudicados pelas ações do terrorista no mundo, se rejubilaram: a justiça finalmente foi feita. Os governos envolvidos, ficaram perplexos, mas silenciaram os respectivos embaixadores.
         Enquanto isso, no bairro Teresópolis, numa mansão do Morro São Caetano e diante do mirante, um senhor sexagenário bebe uma taça de vinho do porto dividida com seu amigo Orquiz. Brindam o desfecho súbito dos últimos acontecimentos. Estão aliviados e confraternizam enquanto olham para o majestoso e plácido Guaíba, enquanto o  Sol desenha uma imagem semelhante a uma serpente sobre o lago. A mesma que um homem, dono de um chapéu de feltro, também enxerga lá em Ipanema, sentado à mesa de um restaurante defronte a orla.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

6 - REFÉNS

O expediente se inicia como todos os dias: ela é a primeira a chegar.
Abre a cortina de ferro da loja de roupas femininas que a irmã resolveu abrir numa galeria da rua Mostardeiro. Acende as luzes, desliga o alarme e abaixa a cortina o suficiente para deixar a porta semiaberta, para que as outras funcionárias possam também entrar no estabelecimento. Faz um ano que o negócio prospera, com excelentes vendas e lucros. Ela e a irmã já pensam em ampliar a loja. Dirige-se para o fundo da loja, onde estão os caixas, o depósito e a escada que dá acesso ao mezanino e administração. Confere algumas notas no caixa e sobe para o escritório. Antes, passa numa pequena copa e prepara o costumeiro café. Da copa vai até o vestiário e põe o uniforme azul com emblema da loja. Entra no escritório e liga um dos computadores.
Neste momento, ouve um barulho de algo caindo no chão. Pensando ser algum colega de trabalho, não presta atenção e se volta para a tela do monitor. Ouve passos rápidos subindo a escada. Resolve se levantar chamando pelo nome da sub-gerente Márcia e quando aponta o nariz no pequeno corredor, leva um susto: um homem magro, de jaqueta e touca, lhe aponta um revolver.
-Fica quieta e entra aí! Berra ele para ela que dá um grito agudo tardio.
 Ele avança e a empurra para dentro do escritório com violência.
-Calada! Onde é que tá o cofre? Vomita! Cadê o cofre? Urrou o estranho enquanto a sacudia pelo braço. Nisso ouve outros passos.
-Noêmia? Você está aí?
O sujeito arregala os olhos e enfia o cano da arma contra o rosto da assustada vitima:
-Quem é essa? Não vou perguntar de novo. A apavorada, já rezando a quinta prece, tenta controlar o choque e balbucia:
-É...é...a minha colega...falou tremendo toda.
-Fica quietinha. Nem um “psiu”.
Os dois ficaram em silêncio. Marta subiu a escada e se dirigiu à copa. Como estava vazia, seguiu pelo corredor e estacou qual um poste.
Noêmia estava chorosa, de pé ao lado de um estranho e com uma arma apontada para a cabeça.
-Aí! Isto é um assalto, mané! Vou fazer essa loja hoje. Você fica quietinha e entra! Não quero queimar ninguém. O malandro passeava o cano da arma pelo ar, indicando a porta da sala.
Marta sentiu as pernas tremerem, mas obedeceu.
Entrou e foi empurrada para dentro. Elas estavam nervosas e trêmulas.
-Pega o que quiser, mas solta a gente. Falou Noêmia, quase engasgando.
-Cala a boca! Já te disse o que quero! Rosnou enquanto esfregava a arma no peito dela.
Marta olhava para a outra e não sabia o que dizer.
-Cadê o maldito cofre? Vociferou e olhou com raiva para as duas apavoradas.
Enquanto isso, um policial militar chamado por um taxista, que viu o homem aproveitar o vão da cortina para entrar na loja, faz um ruído que desperta a atenção do meliante. O mesmo reage iniciando um tiroteio dentro da loja.
O soldado se atira pelo vão ainda aberto da porta e corre para se abrigar atrás de um carro estacionado. O homem de touca empurra as mulheres para o fundo da loja, gritando e gesticulando muito. O soldado chama reforços e em minutos o local está cercado, com um formigueiro de policiais fervilhando, e o transito é interrompido. Uma equipe de Tv vai ao local e começa a cobertura dos eventos numa transmissão ao vivo. Negociadores chegam e travam uma batalha verbal e psicológica com o infrator, que passa a fazer exigências para soltar as reféns.
O comando da polícia reluta em atender aos blefes do criminoso e um plano de invasão da loja é elaborado. Pela televisão, os parentes das vítimas se desesperam. Correm para o local, mas a policia os mantém longe do cenário. Assim, a tentativa de assalto frustrada inicia um longo e tenso período, digno de filmes de cinema. O homem desconhecido dispara em direção do térreo para intimidar e grita ameaças contra as reféns se não for atendido. A polícia não sabe como preservar a vida das duas seqüestradas e pegar o meliante.
O dia corre. Dez horas depois, em outro local...
Um telefonema nervoso faz o dono do chapéu de feltro se encontrar com um outro homem tenso, numa praça no centro de Porto Alegre.
-Não me olhe assim. É minha sobrinha que está na mão daquele delinqüente e assassino.
O homem, que solicitara um encontro urgente com o porta-voz da misteriosa "organização", fumava muito, com longas tragadas. De cabelos escuros e tez morena, aparentando não mais de cinqüenta anos, explanava para o de chapéu, os últimos acontecimentos de que teve notícia pela televisão. Descreveu a angústia ao saber de que um parente é uma das seqüestradas. Narrou a “via crucis” pelos meandros da polícia para obter informações, sempre respondidas em gélidas evasivas e declarações de que tudo estava sob o controle. Resolveu apelar para todos conhecidos, quando uma amiga lhe deu um cartão com o holograma de uma serpente. Ela lhe contou que foi ajudada pela “organização” e que se tornou uma “seguidora” fiel, por isso lhe indicava um caminho pouco ortodoxo para salvar a sobrinha cativa.
-Acalme-se. Não se consegue nada se estando nervoso. Tenha calma. Pediu o homem debaixo de abas curtas sombreando os olhos claros.
-Escute aqui: me disseram que só você pode resolver isso e acabar com este seqüestro..
-Quem disse?
-Esta pessoa. O homem mostra para o de chapéu de feltro a foto de uma mulher. Prontamente a reconheceu: é a esposa que queria aliviar a dor do marido com uma doença terminal.
-Reconheço esta pessoa, mas como posso ter certeza de que ela conversou com o senhor? O olhar do homem de chapéu vasculhava algum sinal delatador de mentira no rosto do outro.
O interlocutor lhe alcança um cartão com o holograma. O homem de chapéu de feltro observa o cartão na mão do tio aflito e toma uma decisão.
-Muito bem. Vou interferir no trabalho das autoridades e salvar sua protegida. Fique o senhor sabendo que estará em dívida comigo.
-Eu pago. Diga-me o valor que eu pago.
O homem de chapéu, em pé e defronte para o outro, dá um sorriso e explica:
-Não estou interessado no seu dinheiro. Dentro em breve terás notícias minhas.
Tão logo acabou de falar, virou-se e sumiu na confusão da rua, abandonando o tio da vitima no meio da praça. O sujeito ficou tão extasiado com a atitude daquele senhor misterioso, com um chapéu fora de moda, que pensou ter sido uma péssima idéia ter pedido ajuda para um estranho. Neste momento, o pai de uma das vitimas liga logo em seguida após a curta conversa no meio da praça:
-E aí? O que conseguiu? Fala de uma vez!
-Não sei. Não conheço este cara, mas parece seguro de si e falou que vai ajudar. Só não disse como.
-Eu estou temendo pela vida dela!
-Olha, vamos procurar a policia novamente e ver se eles nos dizem algo. Também estou nervoso com a situação. Depois eu te ligo.
Desligou o celular e mirando o largo à frente, virou-se e tomou rumo em direção ao Palácio Da polícia.
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Três horas após, em outro ponto da mesma cidade.
Um caminhão Scânia de cinco eixos manobra numa rua calma, fora da área isolada pela policia, mas próximo o suficiente do perímetro vigiado pelas forças de segurança. O motorista vasculha a região com uma câmera de trezentos e sessenta graus, instalada no teto do baú, sem sair da cabine e através de um monitor.
Pelo fone acoplado na orelha, recebe e transmite informações.
-Tá tudo limpo. Posicionado em cima da “estação”. "Tá ligado"?
Ele aguarda o retorno, que não demora:
-Ok! Vamos iniciar o procedimento. Engate o motor.
-Ok!
O motorista movimenta uma alavanca e aciona uns botões no painel. O motor possante do caminhão responde com um ronco característico de ter subitamente se acelerado, para logo em seguida girar quase sem ruído.
Dentro do baú da carroceria, fechados dentro do caminhão, silhuetas se movem.
Um conjunto de monitores e computadores brilham.
Um alçapão é aberto no assoalho do chassi do veiculo. Homens movimentam outra pesada tampa de ferro que se encontra logo abaixo do caminhão.
-Posicionem logo que vamos iniciar a viagem.
Ordenou um dos homens envolvidos na operação.
-Manda ver-falou outro deles.
Imediatamente a “coisa” se põe em movimento. Tudo o que ela “vê” e “sente” é diretamente transmitido para uma Sala de Controle, localizada num pavilhão discreto em algum ponto do bairro Humaitá, na zona norte da cidade.
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Voltando à cena do crime:
Enquanto isso, no mezanino da loja, entrincheirado no vestiário junto com as reféns, o meliante negocia os termos da fuga com um tenente pelo celular de uma das vitimas:
-Quero um carro forte, com bastante gasosa, com motora e trezentos “paus” em notas de cinqüenta. Não quero policia por perto, se não mando bala, entendeu?
-Tudo bem, tudo bem, mas acalme-se, “tá” bom? Estamos providenciando.
O tenente desliga e olha para o soldado ao lado.
-Contate com as “operações especiais”. Vamos cansar ele e depois invadir. Corte água e luz e faça bastante barulho. Usa tudo o que tiver ao alcance para manter ele sempre ocupado, enquanto ganhamos tempo. Chama alguém da “especializada”, pois vamos precisar. E afasta os curiosos daqui.
O subordinado concorda num sinal com a cabeça e se retira.
O tenente fita o prédio e já imagina o “estrago” produzido se a situação piorar, mas não suspeita que perto dali, um grupo furtivo também se movimenta.
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Quarenta e cinco minutos depois, na Sala de Controle:
-Achei a entrada, é esta aqui! Aponta o “engenheiro” para uma abertura na parede de uma espécie de caixa, que aparece na imagem piscante e trêmula de um monitor.
-Vamos entrar. Falou alto outro presente na Sala.
Então a “coisa” avança silenciosamente pelas entranhas do prédio. Ora ela retrocede o movimento, ora se contorce, mas sempre avançando em direção do “alvo”.
Enquanto isso, dentro da loja, o criminoso olha para uma das jovens e se maravilha com o que vê:
-Aí gata. Tu é muito boa, muito cachorra, viu só?
-Tu “ta” na minha ou não?
Olha para ela como quem vai degustar um filé pela resposta.
Ela balança negativamente ao que ele se aproxima, puxa os cabelos de Noêmia e lhe dá um beijo violento, que ela rechaça com um safanão. Diante da reação da jovem, ele lhe dá uma bofetada.
-Tá fazendo doce é? Pois fica ligada: depois desta parada aqui, ó-balança a arma para as duas-vocês vão ser minhas “cachorras”!
E dá um sorriso debochado, mostrando uma coleção dentes muito brancos na boca.
Um ruído quebra o encantamento do aventureiro.
O marginal se apruma curioso.
Novamente outro ruído vindo do vestiário lhe desperta os instintos de sobrevivência. Faz um sinal com a arma para as duas ficarem em silencio. E elas encolhem-se abraçadas uma na outra.
O biltre move-se lentamente em direção do corredor que dá acesso aos banheiros.
Estica o olhar para dentro da peça cuidadosamente, e tremendo, empurra a porta.
-Mas que "porra" é essa?
O que vê não lhe dá tempo de pensar no que é.
Num impulso instintivo mira e ao tentar atirar, sente uma dor muito forte no peito.
Parece que todos os músculos do corpo enrijeceram.
Perde as forças e os sentidos e desaba no chão, e antes que tombe desmaiado, aperta o gatilho.
O projetil ricocheteia no chão e atravessa a vidraça de uma janela, estilhaçando-a. As duas mulheres apavoram-se, achando que serão mortas.
A policia do lado de fora, aos gritos, reage despejando uma saraivada de outros tiros, até uma ordem de “cessar fogo” é berrada pelo tenente.
As reféns miram o marginal estirado no chão, como se estivesse tendo convulsões.
Olham-se e não esperam aviso: saem dali correndo com todas as forças que possuem nas pernas.
Os agentes do Grupo de Operações Especiais lançam granadas de efeito moral e invadem a loja, armados para uma batalha campal, e se deparam com um cenário surreal: o criminoso está vivo e desacordado, tombado no chão e trêmulo. As moças são conduzidas em estado de choque para a rua.
Os policiais  levam o ladrão algemado para o hospital. Ele balbucia coisas incompreensíveis.
As reféns são acolhidas pelos parentes e colegas e a policia é ovacionada pela turba que se reuniu atrás da fita zebrada de “não ultrapasse”.
O delegado e o tenente se questionam o que teria acontecido.
Vasculham a loja para entender o que teria motivado o tiro.
Um dos soldados notou dois pequenos ferimentos no dorso do homem, mas não soube explicar a causa.
O delegado vasculha o local e constata que alguma “coisa” se arrastou por ali.
O que teria sido? O delegado tira fotos com o celular da cena e pede ao tenente que “esqueça” tudo o que aconteceu, ao que o oficial enruga o cenho sem entender a proposta.
Enquanto isso, um caminhão Scânia desliza discretamente para longe do local do tiroteio.
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Uma semana depois, na mesma praça no centro de Porto Alegre onde se iniciou este episódio:
-Muito obrigado pelo que fez pela minha família. O senhor salvou minha filha.
Falou um pai aliviado.
-Ótimo que tudo tenha terminado bem. Disse o homem do chapéu de feltro.
-O que posso fazer para lhe retribuir?
-Somente três palavras: lealdade, discrição e segredo.
Disse, sorriu e cumprimentou o outro, tirando e repondo o chapéu na cabeça, para logo sumir em meio a agitação que começava a tomar conta da praça mais famosa da cidade: a Praça da Alfandehga.

Fim de mais um episódio.

Aguardem o próximo.

domingo, 12 de agosto de 2012

5 - EUTANÁSIA: O ENFERMO


      O homem do chapéu de feltro está junto de uma mulher de meia idade, que sentada ao seu lado, na parte superior descoberta do ônibus que faz a “Linha Turismo” em Porto Alegre, rodando pelos pontos considerados “turísticos” pela Prefeitura, escuta dela lacrimosos pedidos para que “acabe” de vez com o sofrimento do marido.
     A mulher já lhe tinha mostrado o “passaporte” para atingir o objetivo nefasto à que se propunha: eliminar o marido enfermo, diagnosticado com Mal de Parkinson, preso ao leito de um grande hospital particular da cidade.
     -Como a senhora conseguiu este cartão? Falou o homem do chapéu de feltro olhando o objeto que ela balançava na sua frente e cobrando-lhe o que ELE prometera a outros antes dela: atenção ao pedido suplicante de “ajuda”.
     -Um advogado que nós dois conhecemos me repassou este cartão, com a recomendação de que eu mantivesse discrição e segredo sobre o nosso encontro. Fiquei surpreendida com a rapidez com que o senhor veio ao meu encontro. O “meu”, digo, “nosso” amigo, me aconselhou também a não perguntar o seu nome.
     O homem do chapéu olhou surpreso para ela. Ele nunca imaginou que alguém fosse optar por aconselhar outro a tratar com estranhos e anônimos, assuntos tão delicados. Tentaria explorar mais o terreno em que estava pisando. Precisava captar da mulher tudo que fosse necessário para entender as forças que a levavam tomar atitude tão extrema contra o marido. E experiência com propósitos escusos não lhe faltou em diversos “pedidos” semelhante e já atendidos.
    A mulher lhe narrou a gradual evolução da doença degenerativa, que comprometia mais e mais o sistema nervoso do marido, debilitando-o lentamente e dificultando-lhe o menor movimento, até torna-lo totalmente dependente de outras pessoas. Coisas simples e prosaicas, como levar um copo à boca para tomar uma bebida qualquer, ele já não podia mais. Ela teceu pormenores do martírio e o padecimento do marido e à situação a que ela está submetida, decretada pelo diagnóstico cruel de que ele nunca mais voltaria a ser o homem ativo que um dia ela conhecera. Entre lágrimas descreveu que ao fita-lo nos olhos, lhe perguntara qual o mais profundo desejo do resto de vida dele, e entre mal balbuciados sons proferira a palavra que iria definir a atitude dela: morte.
   O homem de chapéu de feltro a tudo ouvia calado observando despreocupadamente a paisagem do itinerário do ônibus, que por vezes alcançava a copa mais alta dos caramanchões a muito tempo plantados nas calçadas da cidade. A mulher percebendo que nenhuma reação obtinha do homem calou-se e virou o rosto para frente um pouco decepcionada. Alguns minutos de silêncio depois, o homem do chapéu se reconecta à realidade:
  -A senhora foi informada do que minha "organização" pede pelos “serviços” prestados?
   Falou lhe dirigindo um olhar azul penetrante, tentando vasculhar a alma da mulher.
 -Não temos muito dinheiro, mas se for preciso se dá um jeito. Disse ela encarando o rosto simpático do homem, que lhe parecia mais jovem no jogos de luz e sombra que a paisagem criava sobre o ônibus.
 -Não cobramos valores e sim algo muito mais caro. Disse ele sem titubear.
-O senhor tem o seu preço. Diga-me o valor para ver se posso pagar. Ela estava achando que não conseguiria nada com aquele sujeito que teimosamente se mantinha de chapéu, mesmo contra o vento que o movimento do ônibus produzia.
-Já lhe disse que não queremos dinheiro. 
 ELE continuava a perscrutar o olhar dela, que ela também retribuía fitando-o, como se trocassem uma energia misteriosa tentando uma comunicação não verbal. 
 ELE à observou melhor: os cabelos loiros, levemente grisalhos escorridos pelos ombros pequenos, o olhar castanho –“cor de tempestade”, pensou ELE- um olhar misterioso e implorando para ser explorado, o porte delicado do corpo curvilíneo dela demonstrava que uma preocupação com uma estética e elegância no vestir, que O impressionava. A boca pequena dava-lhe um aspecto de boneca, embora no rosto de traços delicados já despontassem as marcas do tempo e das agruras que sofria. Desconcertado com a situação, ELE se recompõe e desvia o olhar.
-Então me diga o senhor o que eu tenho de fazer para que me ajude? 
 Questionou ela, temendo e esperando por uma resposta que a comprometesse de alguma forma. Ela já estava desejando isso desde que vislumbrou a majestade daquele homem misterioso, discretamente trajado, cujos cabelos cinza e o olhar instigante lhe inquietara já no primeiro contato.
-Apenas vamos cobrar lealdade, discrição e segredo para com nossa "organização". Preciso que Me repasse alguns dados essenciais para o sucesso do “feito”, tais como: em qual leito e de que hospital, quem cuida dele, horários da rotina destas pessoas e quem pode interferir no nosso “trabalho”.
Ela resplandeceu num belo sorriso, que ELE evitou encarar para não demonstrar que estava esmorecendo diante de uma mulher que LHE derrubou as defesas. Ela levantou a mão para tocar-lhe em agradecimento, mas foi em vão. O ônibus freava para uma parada estratégica no mirante do Morro de Santa Teresa. ELE aproveitou e se levantou repentinamente, encarando-a  já na escada que dá acesso ao andar inferior do ônibus:
-Terá notícias minhas. 
 Num gesto de despedida, levantou e repôs o chapéu na cabeça, coberta de cabelos curtos, lisos e claros como algodão, com o melhor sorriso que pode um homem demonstrar para uma mulher, sumindo logo em seguida do campo de visão dela, que tentava segurar a ânsia de reencontrá-lo novamente.
 Dez dias depois, um caminhão baú de cinco eixos, com um potente motor Scânia realiza manobras numa rua atrás do hospital particular Sagrado Coração, localizado num bairro de classe média alta da zona sul, e comandado por freiras especialistas mais em coisas terrenas do que divinas. Dele desce o motorista gordo, enquanto o auxiliar de manobras permanece na cabine. Os dois enfiados em macacões cinza e com bonés na cabeça, vasculham o entorno. O gordo distribui cones, placas e fitas de sinalização de trânsito interrompido em volta do caminhão. Pelos fones de celular, eles se comunicam com a Central de Comando da "organização". O motorista fala para o auxiliar de manobras e apontando para o próprio olho:
-Fica esperto. Qualquer movimento você já sabe.
-“Tô ligado”, gracejou o auxiliar, verificando o campo de visão de uma câmera especial - instalada no topo do baú - num monitor dentro da cabine. O motorista abre uma porta lateral e some dentro do baú. Em seguida, um rosnar do motor indica que outro mecanismo “estranho” foi ativado e ganhou vida. O auxiliar de dentro da cabine varre a movimentação de pedestres e automóveis, transmitindo tudo para o motorista gordo, que dentro do baú refrigerado, vai ligando botões e válvulas de comando, que transmitem potência e energia para a “coisa”, que responde com violência aos comandos vindos de fora, localizado num pavilhão industrial discreto e em algum ponto do bairro Humaitá, em Porto Alegre.
-Levantei tudo sobre o hospital. Cara, tu precisa ver o luxo da coisa. Tá ligado? Parece mais um hotel cinco estrelas! Falou um impressionado jovem de óculos com um boné da Nike.
-Então te hospeda lá! Falou outro, de barba e óculos fundo de garrafa e cara cheia de sardas, rasgada por um nariz protuberante, operando uma alavanca parecida com um joystick.
-Se liguem. Nico, já baixou os arquivos? Interrompeu o gracejo  outro conhecido por “engenheiro” e que manipula uma alavanca cheia de botões parecida com “joystick” de vídeo-game, enquanto mirava a tela de um monitor LCD com imagens, em que visualizava uma sequencia de plantas baixas e perfis de um edifício. Um ponto colorido piscava intermitentemente enquanto se deslocava pelos desenhos formados por gráficos.
-Sim, já na tela. Desta vez tomei o cuidado de verificar os certificados de autenticidade.
-Ok. Respondeu o "engenheiro".
-Entramos! Anunciou o de óculos fundo de garrafa, com o olhar fixo nas imagens transmitidas ao vivo pelas lentes sofisticadas da “coisa”.
-Muito bem. Vamos seguir o plano passo à passo. Direto ao décimo andar. Comandou o "engenheiro".
Quarenta minutos depois, a “coisa” chega na ala do andar reservada ao Centro de Tratamento Intensivo. É um corredor largo, com leitos – separados por falsas paredes – monitorados e com diversos aparelhos mantenedores de vida. Todos estes leitos estão plugados aos pacientes - de diversas idades e sexo - que pouco se mexem, parecendo múmias que tentam se levantar da tumba. Um paciente não vê o outro, mas todos os leitos são observados por câmeras estrategicamente instaladas nos quartos. No meio da área fica o balcão da enfermaria e saletas destinadas aos médicos, que diante de computadores e monitores, acompanham o que acontece no andar. Ao lado das saletas fica a farmácia, os vestiários com banheiros e o almoxarifado. O andar está calmo. Não há ocorrência que exija correria e nervosismo, como sempre ocorre próximo ao momento de um óbito. Apenas uma enfermeira trabalha tranquila, fazendo apontamentos em um prontuário preso numa prancheta de metal. A “coisa” lentamente sai do “corpo” que a transportou até ali e passa por uma porta esquecida aberta no vestiário. Move-se silenciosamente, mas monitorando tudo ao redor. Qualquer movimento que se fizer próximo, a “coisa” imediatamente transmite ao “comando” instalado lá no bairro Humaitá. A "coisa" vasculha o ambiente. Percorre o corredor e se dirige a determinado leito. Parece indecisa. Recua até outro leito. Estica-se para confirmar a identidade do doente. Recolhe-se e volta. Vai até outro leito. Faz a mesma manobra.
-É ele! Alegra-se o de barba e óculos fundo de garrafa e cara cheia de sardas operando uma alavanca parecida com um joystick e de olho na imagem do homem no monitor.
-Não vamos perder tempo. Contando: um minuto! Ordenou o "engenheiro", apertando um botões, que fizeram luzes dos painéis piscarem alucinadamente.
-Agora! Eu sou o carrasco! Vociferou o da cara cheia de sardas, manipulando a alavanca qual um manche de avião com uma mão e acionado outras alavancas menores em outro dispositivo. As ordens disparadas da sala de ”comando” faziam a “coisa” reagir imediatamente. Uma aba abriu-se no dorso da "coisa" e uma espécie de cateter desenrolou-se, apontando e lançando uma luz violeta para a lente da câmera de monitoramento do hospital. A “coisa” abriu-se novamente e pinças se projetaram, formando uma mão de três dedos dotados de unhas afiadíssimas. O enfermo subitamente levantou as pálpebras e pausadamente virou os olhos para a borda do leito. O cérebro ainda ativo do homem não interpretou corretamente a imagem que enxergou, mas imaginou ser a mão suave da esposa dedicada que lhe acariciava o braço, como ela sempre fazia quando vinha visitá-lo. Porém ele queria mesmo era acabar com o sofrimento dela. Doía-lhe mais saber que ela sofria por ele, um inválido. Desejava que ela seguisse outro caminho e fosse feliz, longe daquele inferno. Vinha implorando a todos os santos que ouvissem as preces mentais que ele fazia constantemente, para que fosse levado ao encontro dos antepassados que já tinham ido.
   A mão androide moveu-se desligando e anulando alguns instrumentos. De uma das pinças ejeta-se uma fina agulha, que numa só punção despeja um líquido incolor no saco de soro pendurado numa haste acima da cama. As gotas transferem a solução direta para o corpo do homem. Ele emite um leve frêmito e em seguida adormece. A “coisa” então encolhe as pinças e fecha-se. Um sinal sonoro agudo desperta a atenção dos observadores na sala de “comando”.
-O que foi? Pergunta um deles.
-Tem alguém se aproximando.
-Temos que sair rápido. Grita o "engenheiro" ao mesmo tempo que as alavancas são movimentadas com energia e força.
A “coisa” move-se mais rápido. O ruído produzido chama a atenção da enfermeira, que se ergue da cadeira para localizar a origem do barulho. Porém ela olha para outro lado, em direção à porta de entrada da C.T.I. já aberta por um médico que lhe pergunta se se está tudo bem. Ela argumenta pensar ter ouvido um ruído, como algo metálico sendo arrastado. O médico responde que não escutou nada. A enfermeira então balança a cabeça e se senta na mesma cadeira. O médico entra na saleta e se depara com um dos monitores cheio de estática, que impedem de ver a imagem transmitida pela câmera numero cinco. Pensa ser algum defeito ou mau contato e examina os cabos do aparelho. Como não nota nada, resolve ir até o leito. Ao chegar lá fica petrificado. Não acredita no que vê. Os fios e tubos que conectavam o enfermo aos aparelhos mantenedores estavam cortados e os monitores desligados. O homem no leito parecia dormir um sono eterno, com um leve sorriso nos lábios.
O-O-O-O
Vinte e cinco dias depois, no mesmo ônibus de turismo, porém num banco na parte de baixo, já que a parte aberta estava lotada, um casal confabula cumplicidades.
-Eu estou eternamente endividada com o senhor. Não sabe o alivio e a paz que estou sentindo neste momento. Falou a mulher sem olhar no rosto do homem de chapéu feltro, sentado ao seu lado.
-A polícia e o hospital estão atônitos. Ninguém sabe explicar como foi que aconteceu. Eu mesma fiquei todos estes dias ansiosa, esperando uma notícia sua, mas só tinha o silêncio por resposta. Então, de uma hora para outra, recebo “esta surpresa”. O meu marido enfim descansou em paz. Eu posso lhe fazer uma última pergunta, continuou ela, agora fitando o companheiro de viagem, que mantinha o rosto virado para a frente, evitando olha-la.
O homem do chapéu de feltro que escutava mudo o tagarelar da mulher, apenas assentiu um sim com a cabeça.
-Ele sofreu? Digo, ele sentiu alguma dor? O olhar suplicante não teve a força necessária para demover o homem da posição em que se encontrava.
-Não. Ele não sofreu nada. Foi rápido e indolor. Partiu em paz, depois de ter adormecido.
-Obrigada mais uma vez. Eu sei que um dia terei de lhe retribuir esse favor e sei que farei isso com todo o prazer. Falou ela para ele, com a voz carregada de sentimento, quase engasgando a voz, pois desejava profundamente que de alguma forma ELE lhe cobrasse a “dívida” que tinha contraído com a “organização”. Porém, o homem de chapéu de feltro não emitiu o menor sinal de que fosse efetivamente cobrar algo dela. Apenas levantou-se, ajeitou o chapéu de feltro na cabeça e, desta vez encarando-a com um sorriso cativante, apenas lhe deu adeus, informando que um dia lhe daria notícias. Se despediu cavalheirescamente e desceu do ônibus, sem voltar o olhar para trás, deixando-a chorosa e feliz.

Fim deste episódio.

domingo, 5 de agosto de 2012

4 - O PLAYBOY


No vigésimo andar do edifício envidraçado da sede de uma petroleira, erguido próximo ao centro de Porto Alegre, numa tarde quente e de poucas nuvens. Três homens conversam ao redor da mesa de vidro oval:
-Isto é uma infâmia! Fala nervosamente o gordo e calvo, de terno caro que não consegue alinhar-se ao corpo mal cuidado.
-Pois é, essa é a última dele. Falou outro, em pé diante da mesma mesa e com as mãos no boldo de calça esporte de grife, feita por mãos de um exclusivo alfaiate estrangeiro.
-Como vamos equacionar esta questão? Balbuciou o mais velho deles, único deles cujo terno combinava elegantemente terno, gravata e camisa.
-Esse cara já está me irritando! Rosnou o gordo, já demonstrando inquietação nos movimentos desengonçados do corpanzil.
-Não podemos fazer nada. Ele detém quarenta e três por cento das ações com direito a voto além de outro tanto das preferenciais. Agradeçam ao pai dele por isso.
-Não contávamos com a morte prematura do Moacyr. Quem adivinharia que o vagabundo do filho dele ia pular para dentro do Conselho tão rápido? Falou o que permanecia em pé.
-Bem...senhores...do jeito que as coisas vão, a fusão não poderá se concretizar. O velho executivo correu o olhar para os outros dois que lhe também observavam.
-O C.A.D.E. já autorizou a negociação. O prazo está correndo. Se este “guri” fizer o que disse, vai tudo por água a baixo, inclusive o seu investimento...e sem o retorno prometido! Falou o gordo desalinhado apontando o dedo em riste para o velho no outro lado da mesa.
-Não precisa me lembrar disso. Entrei na sociedade e sabia dos riscos, mas não imaginava que uma tragédia com o Moacyr fosse mudar tudo. Agora é o herdeiro dele que está dando as cartas. Sabemos que é um playboy que vivia à custa do pai, esbanjando dinheiro com mulheres, carros e festas, que nunca se interessou pelas empresas. Eu, todavia, tenho uma solução.
Os outros se entreolharam com espanto, voltando-se com ar de curiosidade para o velho sentado.
-Isto. Tirou do bolso um cartão, com um holograma de uma serpente com um número de celular. O objeto deixou os dois sujeitos mais intrigados.
-O que é isso?
-Será a nossa salvação. Mas preciso que vocês concordem comigo. Não posso tomar esta decisão sozinho, apesar de que sou eu que corro mais riscos.
-Pode ser mais explicito-falou o gordo calvo.
-Se aprovarem, contatarei estes “caras” e “eles” darão conta do recado. Eu lhes garanto que são precisos e não deixam pistas. Fazem um serviço “limpo”.
-Do que você está falando? Perguntou o outro executivo de pé.
-Lembram-se do que aconteceu com o assassino do meu neto?
-Sim, lembramos disso-ressoaram em uníssono os dois únicos ouvintes da sala.
-Pois bem. Eu estava com um nó na garganta que só desatei quando “eles” me deram a prova do que são capazes. Até hoje ninguém, a não ser vocês presentes nesta sala, sabem o que aconteceu.
-Você está insinuando “apagar” o playboy? O gordo arregalou os olhos.
-Não. Não podemos fazer isso que daria muito na vista. Eu tenho em mente outra coisa.
-O que é então? Inquiriu o que estava de pé, apoiando as mãos na mesa e aproximando-se mais da borda da mesa.
O velho começou a calmamente a explanar as ideias que tinha em mente, com as quais os outros dois homems pareciam concordar.
Vinte dias depois, num pavilhão discreto localizado no bairro Humaitá, na zona norte de Porto Alegre.
-Levantei todos os dados necessários. Veja a foto do satélite. Aqui – aponta com o dedo indicador um ponto na tela de LED do monitor- está a casa-alvo e o local todo é cercado por grades, com cerca elétrica, sensores de movimento, além de vigilância ativa vinte e quatro horas, monitorada por “trocentas” câmeras de vigilância e inúmeros sensores de movimento, espalhados por todo a área baldia e campos de golf. Aqui do lado – muda a indicação na mesma tela – está um aeroporto exclusivo, onde os figurões estacionam seus brinquedinhos de fim de semana. Tem uma empresa que controla a entrada e saída de todos por lá. Ninguém circula sem o conhecimento deles. Há motoqueiros varrendo toda a área e aparecem ao menor sinal de movimento estranho. Ninguém entra se não for autorizado e acompanhado pela segurança.
-Como é que vamos entrar lá? Pergunta um rapaz de barba mal feita, sentado em cima de uma outra mesinha ao lado.
-O que é isso? Pergunta o homem de chapéu de feltro apontando para um risco na imagem.
-É um canal que liga os lagos artificiais com o rio Guaíba. Originalmente eles usariam o canal para práticas de esportes aquáticos ou coisa assim, mas foram proibidos. É usado mesmo para abastecer e manter o nível da água dos lagos, somente para isso. Lá, parece que não podem fazer nada nos lagos, nem nadar.
-Então está respondida a tua pergunta. O homem de chapéu de feltro olhou para o rapaz de barba mal feita.
-Como é? Retrucou ele ao do chapéu.
-Vamos entrar no condomínio pelo rio, através do canal.
-O nosso equipamento é para operação em terra. Além disso, a distância é de quase quatro quilômetros. Como vamos chegar até a casa?
-O nosso engenheiro aqui – olha para o que está defronte ao monitor- adaptará para uma draga, que deverá ser ancorada próxima à foz do canal. A draga não despertará suspeita, já que se misturará por pouco tempo às várias que estão trabalhando no local. Entramos no condomínio pelo canal, acessando de lago em lago a casa pelos fundos, já que é banhada por um dos lagos. Uma vez lá, procuraremos nosso alvo. Aí se inicia a segunda fase do “trabalho”. Algum pergunta?
Falou e dirigiu o olhar para os dois mais jovens, que concordaram com a estratégia.
Um mês depois, à beira de uma piscina descoberta e banhada pela luz da Lua e de um céu estreladíssimo.
-Cara isso é maneiro! Que “baia” é essa tua! – elogiou o musculoso de trancinhas rastafári.
-É isso aí “brother”. E tudo o mais é meu agora. Tô a fim de encomendar uma “parada” aí ó! -  discursa o tipo surfista, de cabelos loiros e encaracolados, com tatuagens espalhadas pelo corpo, sacudindo uma garrafa de uísque numa das mãos.
-Tá, é isso aí. Tô dentro! Correspondeu o outro com um leve soco de punho fechado no queixo do surfista, que entendeu como um gesto de carinho.
Enquanto os dois “boa-pinta” se distraem na piscina,  a “coisa” se aproxima da casa.
-Chegamos. Vou começar a procurar a entrada-explanou o “engenheiro” que manipulava uma alavanca cheia de botões parecida com “joystick” de vídeo-game, enquanto mirava a tela de monitor LCD com imagens em que visualizava um pier desativado nos fundos da residência majestosa e mais acima uma quadra de futebol sete, antes de alcançar a piscina descoberta da mansão.
-Procure com carinho. A entrada deve estar em algum canto por aqui. Assim que acharmos, dê o comando. Falou um outro jovem, de boné da Nike.
-Estou baixando para o numero um o projeto completo da casa. Falou um terceiro, com óculos fundo de garrafa e cara cheia de sardas, rasgada por um nariz protuberante.
-Ok! Pelo GPS já estou me localizando. Só espero que desta vez teus arquivos estejam corretos.  – aceitou o operador do joystick.
-Esta informação não depende só de mim. Retrucou o de óculos.
-Parem de discutir - cortou o de boné – vejam só o nosso “mané”! Falou olhando para uma imagem num outro monitor, que mostrava dois homens na piscina.
-Que romântico! Gracejou o operador do joystick-Sinal de que estamos dentro. Vamos deixar estes babacas para lá e começar a procura. Ativando os sensores de ultra-som e infra-vermelho.
-Ok! Concordaram os outros na sala mal iluminada pelos brilhos intermitentes de luzes piscantes vindas dos painéis cheios de botões. Um zumbido e motores começam a mostrar que dão vida a uma “coisa” que se move silenciosamente pelas entranhas da casa.
Quatro horas mais tarde.
-Operação concluída com sucesso. O celular vibra tons que forçam um sorrizo na boca do homem de chapéu de feltro, em outro ponto da cidade.
-Vocês foram perfeitos. Agora deixem comigo a finalização do nosso “trabalho”. O toque de “mestre””.
Disse e desligou sem esperar a resposta. Em passos lentos se dirigiu para um restaurante famoso pelos sabores chineses, onde um senhor muito distinto e de elevada reputação política o aguardava.
Uma semana depois, na mesma sala do mesmo edifício sede da petrolífera, onde tudo começou, copos com o espumante mais sofisticado que o dinheiro pode pagar, tilintam entre si.
Os convivas são só sorrisos e confraternizam:
-Aos negócios! Brinda o gordo, que a camisa quase se arrebenta tentando a abraçar a imensa cintura.
-Á felicidade de todos nós! Confraterniza outro, que não põe mais as mãos nos bolsos, somente balança a taça no ar em sinal de vitória alcançada.
-Como eu disse antes, “eles” não nos decepcionariam. Não teremos mais este obstáculo e poderemos levar a fusão adiante. “Eles” nem imaginam o quão somos gratos e devedores - sorri o velho, enquanto acaricia a taça numa mão e com a outra alisa a serpente do holograma no cartão.
Enquanto isso, na sala de interrogatório da policia federal:
-Eu já disse cara: eu não sei como é que o “bagulho” entrou lá! Não é meu! Alguém quer me prejudicar! Preciso falar com meu advogado!
-Tudo bem, tudo bem. O “bagulho” não é teu. Parou lá por mágica. Cocaína em forma líquida, cem por cento pura, diluída no teu aquário, bem no meio da tua sala, quem iria suspeitar? Cara, teu advogado vai ter muito trabalho.
Contrapôs o agente federal, envergando a coluna diante de um confuso playboy surfista.

Fim de mais este episódio.







sexta-feira, 3 de agosto de 2012

3 - A VINGANÇA



A VINGANÇA TEM UM PREÇO
O clima de consternação e revolta contrastava com a beleza e a paz do lugar. Estavam todos num cemitério diferente dos tradicionais, pois em vez de sepulcros e cruzes, apenas um imenso gramado, ornamentado por muitas flores e rodeado por bosques. Para demarcar o local onde repousa o ente que se foi, colocaram apenas placas com elaborados epitáfios, confeccionadas em materiais que vão do granito elegantemente polido ao mais nobre e caro mármore importado. Um cortejo em torno de um dos vários sepulcros, distribuídos geometricamente, chama a atenção de quem por ali “passeia”. De longe se ouve o lamento da perda trágica. Alguns dos presentes no ato fúnebre confabulam entre si sobre a desgraça que abateu o ânimo do velho progenitor da última linhagem dos Goldmam. A família atingida pela tragédia é composta por controladores de um poderoso cartel, que estende negócios do cimento à indústria naval.
O jovem que perecera em meio a uma tumultuada perseguição policial, era o herdeiro de tudo o que representa o sobrenome daquela família neste país. Em meio ao séquito, um idoso com dificuldade de movimento na perna direita, devido a uma trombose, é o único que não transparece dor ou tristeza.
Do olhar frio dele emana somente um vil sentimento: o ódio.
Ereto, apesar da idade, parece um tronco resistindo à tempestade. Não sorri e nem desvia o olhar da cova que engole aquele que foi o depósito de suas esperanças.
Ele não responde às condolências e para todos dirige sempre o mesmo olhar.
Não dá para se afirmar o que ele quer dizer, mas é um olhar diferente, maligno.
Outro homem de idade, que vai além dos cinquenta, se aproxima e em voz quase sussurrada, fala bem próximo do ouvido do avô do morto:
-Sinto pelo seu pesar meu amigo.
-Não sinta.
Responde o velho sem piscar e nem olhar para o rosto de quem lhe dirigiu os sussurros.
O interlocutor levantou o olhar impressionado.
-O que eu posso lhe dizer neste momento?
-Apenas o que quero ouvir. Responde o ancião rispidamente.
-E como isso poderia lhe diminuir a dor?
Sussurrou já deduzindo aonde o ancião queria chegar, que lhe voltou o olhar gélido:
-Quero que acabe com a raça do desgraçado que fez isso com meu neto. Entendeu?
A voz rouca do velho agora emanava uma energia de quem ditava uma ordem.
-A justiça já foi feita. O culpado já está preso e...
O homem não chegou a concluir e foi interrompido pelo tom forte das palavras balbuciadas pelo avô do morto.
-Justiça? Que justiça? O miserável está se refestelando no conforto de uma cela paga com o nosso dinheiro, enquanto meu neto desce esta catacumba! Perdi meu filho num acidente, dez anos atrás e agora o perdi de novo, pelo meu neto. E o que você vem me dizer? Que foi feita justiça? O miserável ainda vive e debocha de mim e do meu filho!
As palavras acompanhavam os punhos cerrados socando o fundo dos bolsos do “sobretudo” preto. O amigo, concordando com o ancião, retira do paletó um cartão com um holograma, que deriva uma imagem de uma serpente sobreposta ao numero de um celular.
-Sou advogado e sei o que significa tua revolta diante da justiça dos homens. Eu não posso mudar os fatos, mas posso confortá-lo com isso.
Ele estende a mão com o cartão entre os dedos para o velho que o observa desconfiado.
-O que é isso?
-É a “justiça” que tanto procuras. Quando alcançares teus propósitos, repasse este cartão adiante e... –olhou sério para o ancião que agora resplandecia um brilho diferente no olhar-...mantenha a máxima discrição e segredo. Eu nunca lhe repassei este cartão, entendeu?
-E daí? O que um simples cartão vai me resolver? Isso é um disque-pistoleiro? O cara está dentro de um presídio de segurança máxima. É um assaltante de bancos que nunca poderá irá sair de lá. Você pode me ajudar de outra forma: suborne alguém, facilite a saída dele, tire-o de lá, que aqui fora mando eu.  E quanto a esse cartãozinho...posso joga-lo fora, não posso?
-Eu não faria isso se fosse você. ELES me ajudaram muito e são perfeitos, exatos e não lhe decepcionarão, mas valorizam o reconhecimento e a retribuição.
-Retribuição? Você quer dizer “dinheiro”? Então são mercenários.
-Não. Eles não são mercenários. Você entenderá quando chegar a hora. Afinal, o que é que você mais deseja? E não é isso o que importa? Se fosse você, não jogaria este cartão fora.
O ancião refletiu e ponderou que talvez o amigo advogado tivesse razão. Por que não arriscar?
-Sim, qualquer que seja o preço, eu pagarei.
Falou e enfiou o cartão no bolso, voltando o pensamento para o único e funesto propósito de seu resto de vida: vingar a morte do neto.
-O-O-O-
Quinze dias depois, dois homens se encontram num café nos altos do mercado público de Porto Alegre.
-O senhor está me dizendo que não vê dificuldade nesta “ação”? Então me diga: como é que vamos executá-la?
O outro homem usando um chapéu de feltro, de pernas cruzadas e bebericando um cappuccino, resmunga:
-Você recebeu minhas diretrizes. Basta segui-las na integra. Antes, tenha certeza da qualidade das informações colhidas em nossa “rede”. Use de nossos contatos... você sabe como aproveitá-los ao máximo.
Sorveu o ultimo gole e ia levantar da cadeira quando foi interrompido pelo outro ainda sentado:
-Vamos ter que nos manter mais afastados devido ao perímetro de segurança que existe em torno do presídio. Isto significa que vamos ter que utilizar mais material e isso poderá complicar o operacional.
O engenheiro estava preocupado. O Snakers iriam atacar um local extremamente vigiado. A “operação” continha alto grau de periculosidade para a preciosa “coisa”.
-Não me preocupo. Você é um engenheiro talentoso. Saberá como contornar os obstáculos técnicos. Qualquer dificuldade peça ajuda aos nossos “artesãos”. Tenha sempre em mente o nosso objetivo, que as ideias lhe fluirão com a nitidez necessária.
Falou o do chapéu de feltro e depositou algumas notas sobre a mesinha.
-O café estava saboroso. Tenha uma boa tarde.
Cumprimentou e sumiu entre o murmurinho agitado do mezanino do Mercado Público.
O outro apenas olhou para a xícara vazia enquanto brincava com uma colherinha de plástico.
-O-O-O-
Trinta e dois dias depois.
Local: Penitenciária de Segurança Máxima de Charqueadas.
É a hora do final do banho eventual de sol dos presos do pavilhão B.
Usando o tradicional uniforme laranja, o prisioneiro 1665-B caminha em uma fila indiana para fora do pátio de sol, em direção do corredor que dá acesso às celas. Passando por três portões automáticos dele já está novamente dentro da cadeia, depois de passear pelo olhar eletrônico de uma dúzia de câmeras e sensores de movimento. O carcereiro dá a ordem e as portas são finalmente trancadas. Neste presídio a distribuição é de um preso por cela de quatro metros quadrados. É a ala dos presos de alta periculosidade e de regime fechado. Sem visitas e com a liberdade totalmente cerceada por muros de oito metros de altura e chapas de aço no contra piso. O preso 1665-B sorri. Ele recebeu uma mensagem cifrada vinda de fora na hora do banho de Sol. Debaixo do colchonete retira um papelote com o mais puro pó. Alinha um filete branco sobre a mureta que separa o vaso sanitário do resto do pequeno cubículo e com um canudo improvisado com  o papel da mensagem suga pela narina toda a “carreirinha”. Sente um êxtase e continua sorrindo e imaginado que dali a alguns dias uma “encomenda” vai chegar pelas mão corruptas de um carcereiro.
Entretanto, um ronco vindo do fundo da cela lhe desperta do “sonho”.
-Ué? Quié isso cumpadi?
Pensou enquanto fitava a “coisa” que emergia dentro da cela, vinda do outro lado da mureta.
-Hêeeee...êta....essa é da boa mesmo...já tô viajando...de onde essa “coisa” veio?
Ele se questiona, pois não há como entrar ali sem passar pela porta. O cubículo é todo blindado para evitar fugas.
Só que o sorriso debochado do meliante dura pouco e se transforma num urro de dor.
Tudo para ele agora é só escuridão!
Enquanto isso, num monitor longínquo, a imagem formada é límpida e confirma que o “serviço” foi executado com o sucesso habitual. Homens aliviados comemoram batendo palmas e celebrando. Botões são acionados e um engenheiro dá a ordem final: “Desativar sonar e recolher pinças. Vamos sair.” 
Respondendo aos impulsos digitais vindos da Central de Comando, localizada num pavilhão em local que não pode ser revelado por questões de segurança, a “coisa” reage obediente e se recolhe pelo mesmo caminho que fez para penetrar nas entranhas do edifício da penitenciária.
Logo em seguida, e rapidamente, um caminhão Scania de cinco eixos se afasta do local, quadras distante da penitenciária, sem que pedestres desatentos possam imaginar que nele é transportada a "morte".
Os gritos do preso 1665-B ecoam e chamam a atenção dos agentes penitenciários. Quando checam as celas se deparam com um horror: ele está estirado no chão, com os braços abertos e olhos esbugalhados. Um filete de sangue escorre pelo pescoço, definido por um corte certeiro de uma lâmina que decepara a traqueia e a carótida. Em vão os agentes penitenciários tentam salvar o indivíduo. O homicídio ocorreu dentro de uma cela trancada, sem testemunhas e sem explicação convincente. Isso deixou todos, agentes e presos, apavorados e atônitos.
A imagem do sistema prisional ficou maculada, e já não é mais considerada um modelo inexpugnável.
-O-O-O-
Vinte dias depois, sob o pergolado de uma mansão localizada na rua Portulaca, em um elegante bairro de Porto Alegre, o ancião-avô sorri para o cavalheiro dono de um chapéu de feltro, cuja identidade não pode ser revelada:
-O senhor não sabe o alívio que as últimas notícias me trouxeram. Sei que isso não vai trazer os meus descendentes de volta, mas o sobrenome da minha família jamais será desrespeitado dessa maneira.
O cavalheiro de chapéu apenas sorriu de leve, demonstrando um falso interesse pelo assunto.
O ancião prosseguiu:
-Descobri que meu neto engravidou uma moça e minhas esperanças renasceram das cinzas. Sei que não estarei aqui para ver isso acontecer, mas eu estou no caminho certo e quem sabe, meu bisneto possa um dia reconhecer tudo o que fiz por ele.
-Não me importo com o que o senhor lucra o perde com isso. Apenas peço que me diga: onde está o cartão?
O velho tira de uma carteira o cartão holográfico e o alcança ao homem de chapéu de feltro, que o confere e devolve.
-Repasse-o a outro que, como o senhor, venha necessitar dos serviços de minha “organização”.
-Muito bem, e quanto lhe devo?
-Não me deve nada.
-Não entendi? Tem que haver um preço. Diga qual é. Dinheiro, propriedades, mulheres, o que quiser...
-O senhor deve-nos apenas dedicação e lealdade, nada mais, e será quitado quando e se necessitarmos.
Disse e se levantou já procurando a saída sem se importar com o olhar estupefato do ancião.
-Espere, eu pelo menos posso lhe apertar a mão em sinal de agradecimento? O senhor é o responsável pela minha paz.
O homem de chapéu de feltro nada respondeu e nem mudou o rumo. Deixou o ancião falando sozinho, com a mão estendida no ar.
Deu meia volta e embarcou em um automóvel Honda Civic preto, que o aguardava no bem cuidado jardim da residência.
O carro foi se afastando, deixando para trás mais espanto que admiração.
-O-O-O-
Fim de mais uma façanha dos Snakers.

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