Tarde nublada e sem Sol em Porto Alegre.
Não choveu, mas a nebulosidade teima em pairar sobre a cidade, tornando o dia cinzento e pesado. A umidade verte nos paralelepípedos e no basalto das calçadas. Parece que alguém varreu a pavimentação das ruas com uma mangueira. O dia transcorre calmo, como a lentidão dos carros nos já cotidianos engarrafamentos, que se formam não se sabe porque. A poluição se mescla com a nebulosidade formando um manto escuro, que quem chega de viagem pelos céus imagina que vai pousar em Pequim ou na Ciudad del México, tal o nível de partículas boiando na atmosfera.
Este quadro só não é mais tenebroso porque dois cidadãos sorvem capucinos no Martini, famoso bar e restaurante do Mercado Público. Alheios ao aspecto do panorama da cidade semelhante à um quadro de Vincent Willem van Gogh, eles mantém um discurso cortês, digno da altura das próprias responsabilidades. Um é oriental, provávelmente nipônico ou mesmo de outra origem lá por aquelas bandas. O outro, um senhor de tez marcada pelo tempo, grisalho, empertigado dentro de um terno finamente cortado, combinando com uma gravata listada, dirige especial atenção ao interlocutor estrangeiro, baixinho e de cabelo preto cortado, como se apenas o topete devesse ser preservado. Também bem vestido em um terno de grife européia ou coisa que valha, sorri para o ancião brasileiro e gaúcho, que corresponde com um firme aperto de mão antes de se despedirem.
O velho dirige-se à saída desacompanhado do oriental, que obedecendo à um protocolo de segurança não escrito, se mantém sentado e aguarda que o velho suma entre os pedestres ocasionais que passeiam pelo Mercado Público, para só então pôr-se em movimento.
O que eles trataram tão amigávelmente? Não se sabe, mas após este encontro "coisas" estranhas começaram a acontecer nos arredores de um pavilhão discreto, localizado em algum ponto do bairro Humaitá, na zona norte de Porto Alegre. A agitação permaneceu por dias e noites, com um entra e sai nervoso de caminhões sem identificação. Pessoal e veículos ocasionalmente que passem defronte ao prédio são imediatamente filmados. As imagens coletadas são automáticamente analisadas por potentes computadores, que procuram identificar possíveis ameaças ao que se passa dentro do misterioso prédio.
Após um determinado tempo, a calmaria volta a reinar no bairro. A agitação inicial cessa e dá lugar a uma estranha paz.
Numa noite gelada, com um nevoeiro encobrindo tudo e todos, uma jamanta rebocada por um possante motor Scânia se arrasta pelas ruas da cidade, escoltada por dois automóveis. Num deles, um Honda Civic preto, um homem se ergue debaixo de um chapéu de feltro muito bem cuidado. A testa enrugada e a força de sua expressão contrasta com a determinação de sua calma. Ele sabe o que faz e tem noção do poder que possui. Está em mais uma missão. Sabe que é suicídio, que pode por tudo a perder, mas em vez de matar ou destruir, tentará fazer o melhor uso possível da tecnologia que a organização que fundou ajudou a criar. Estará atendendo um pedido de ajuda de uma Nação no outro lado do mundo, o que pode expor a "organização" até agora mantida em total discrição e segredo, até mesmo por quem já se utilizou dela da forma mais pérfida, mas que ELE entende ser legítima. Não lhe interessa fama, dinheiro ou poder, que isto ele tem de sobra, pois governo algum seria capaz de desbaratar. Deve este nível de segurança ao grupo que em torno de si se formou: são fanáticos pela causa, deslumbrados pelos eventos que desencadeiam e que disto se alimentam, como soldados anônimos que travam uma guerra silenciosa contra forças que um cidadão comum consideraria insuperáveis.
Agora, a aventura em que estão embarcando vai levá-los ao Japão numa missão altamente perigosa: terão que "penetrar" numa câmara de concreto, um verdadeiro sepulcro radioativo. Da mesma maneira que já fizeram isso em ocasiões anteriores, tentarão o impossível para um ser humano, mas perfeitamente exequível para a "coisa", que vai embarcada num navio de carga rumo à Tóquio, disfarçada como peças de reposição para uma fábrica de juntas homocinéticas, dentro de containers, com documentação "acima de qualquer suspeita", emitida pela filial brasileira de uma indústria nipônica autêntica. Assim, nenhuma das aduanas desconfiará da "carga" sensível embarcada nos caixotes de aço.
A sorte estará lançada quando a coisa for atirada num ambiente extremamente inóspito. Os engenheiros não sabem o que poderá acontecer. O velho franze o cenho ao imaginar o que pode ocorrer. Ele afasta os maus presságios com um bocejo. Após ter embarcado, não se sente um "clandestino" dentro do navio japonês, mas respira pesadamente ao lembrar que se alguma coisa der errado em Fukushima, terá serios problemas para enfrentar. Enquanto pesa o que pensa, deposita o elegante chapéu de feltro numa mesinha ao lado do beliche, o mais baixo deles dentro do dormitório destinado à tripulação do navio. São oito beliches empoleirados e presos nas paredes como prateleiras gigantes. Ele fita o estrado da cama de cima e fecha os olhos. Tenta imaginar que tudo correrá bem.
-"Vamos completar a MISSÃO com êxito qe vamos voltar pra casa com o sabor de mais uma vitória no rosto. Vamos estourar champanhe quando chegarmos."
O velho divaga até que por fim, adormece, enquanto parte da equipe ainda tenta se acostumar com o balanço do navio rumo ao desconhecido.
-O-O-O-
O que você(s) acha(m) que aconteceu com a "coisa" em FUKUSHIMA?
Talvez este deve ser o final para mais esta história (será?): MISSÃO FUKUSHIMA